Quase nunca nos lembramos, mas as malas também têm pernas (ou é como se tivessem).
As Andarilhas deste ano reuniram na cave da Biblioteca uma série de colecções improváveis. Uma delas foi este conjunto de malas antigas criado por Jorge Pereira, cada uma contendo objetos de uma profissão. No programa diz
assemblage de objetos de Jorge Pereira e esta legenda só adensa o mistério, porque olhamos para as malas e não percebemos se são ficção ou realidade, se o Jorge as encontrou assim já prontas nalgum sótão, se foi montando cada uma peça a peça, descobrindo os objetos sabe Deus onde. Eu acreditei que eram malas verdadeiras, de pessoas verdadeiras (já defuntas), mas ao mesmo tempo acreditei (porque as malas eram mesmo lindas) que tinham sido pensadas e montadas por alguém muito talentoso. Gostei de acreditar nas duas coisas ao mesmo tempo.
A alguns autores que também andaram pelas Andarilhas foi pedido um texto (uma micro-narrativa como agora se diz) para acompanhar cada mala e, de algum modo, dar vida às pernas que as fizeram andar de um lado para o outro.
A mim coube-me a mala do dentista, mas todas eram elas verdadeiramente inspiradoras.
Eis algumas:
A mala da atriz
A mala do médico
A mala do trolha
A mala do fotógrafo
A mala do dentista
E já agora o texto que a acompanhou (para quem tiver paciência para coisas micro mas que em formato blog ficam logo "macro"):
Chegava sempre antes de se ouvirem os primeiros murmúrios no adro.
Empurrava a porta apenas o suficiente para o corpo passar para o lado de lá e
logo a fechava atrás de si, fazendo a maçaneta rodar devagar como quem acerta a
combinação de um cofre.
Na gaveta sob a mesa dos livros de assinaturas procurava a pequena chave do
armário de canto. Fazia-o quase às escuras, apenas tateando, com a luz que
rompia as frinchas das portadas a iluminar-lhe as pontas dos dedos. Depois,
quase em silêncio e afundando lentamente os pés na alcatifa escura, caminhava
até ao armário. Tinha tal prazer nesses instantes que, quando as portas cediam
aos movimentos da pequena chave e as mãos escorregavam por entre as cortinas de
seda azul celeste, não o largava a ideia de estar a entrar no paraíso.
Sobre o pano de linho pousava a taça, a caixa de porcelana arredondada, a
garrafa de vidro muito fino e, finalmente, o cálice que retirava da prateleira
mas alta, esticando os braços ao alto sem perder o equilíbrio. Limpava todas as
peças meticulosamente, organizava-as no tabuleiro por ordem de entrada em cena
e, no final, junto à pia do canto oposto, lavava-se até aos cotovelos,
caminhando com os braços em L até à toalha turca onde se secava.
Foi assim durante anos. Por muito que lhe custasse admitir, aquele a que
passou a chamar o dia da revelação aconteceu num domingo igual aos outros, a
missa já quase a terminar, as mulheres mais velhas levantando-se para formar
fila, as mais novas logo a seguir, os homens a deixarem-se para o final, como
quem decide entrar num comboio já em andamento. E ele, que até costumava estar
metido para dentro numa espécie de transe, longe dali, foi chamado à terra no
momento em que as primeiras bocas se abriram para receber a hóstia e uma cárie
com mau aspeto surgiu subitamente no seu campo de visão. Procurou voltar à
concentração, fechar os olhos, mas a imagem do dente esburacado não o largou e
viu-se obrigado a voltar de novo à luz para afastar os pensamentos, mas já uma
nova boca se abria à sua frente e, desta vez, pareceu-lhe, um abcesso de onde
pendia uma minúscula bola de pus espreitava ao fundo, atrás de um molar com
aspeto maltratado. Não foi preciso que as figuras dos altares chorassem sangue
ou que um raio de luz descesse do teto da igreja: bastaram aquelas bocas
tristes e o coração a correr para outro lado para sentir nisso um chamamento.
No domingo seguinte esteve desconcentrado o tempo todo, ansioso pelo
momento da comunhão, não pensando senão em observar os progressos das cáries
dentárias dos seus fiéis. Teve a sensação de que todos os males tinham origem
naquelas bocas fustigadas e não duvidou de que a salvação do mundo começaria
pela sua própria conversão.
Para o substituir veio um rapaz novo, simpático, de dentes ainda muito
brancos.
Ele passou a atender todos os domingos, logo a seguir à missa. De mangas
arregaçadas, mãos muito limpas, os instrumentos meticulosamente arrumados na
mala que passou a acompanhá-lo. Uma espécie de novo altar.