Não resisto a mais este excerto. Zaid fala aqui da desconfiança de Sócrates (o filósofo) em relação aos livros, e de como este considerava a palavra viva (oral) milhares de vezes mais interessante do que a leitura. Zaid dá razão a Sócrates, mas contrapõe dizendo que os livros podem ser formas de animar esse diálogo. Leiam, leiam…
Graças aos livros, sabemos que Sócrates desconfiava dos livros. Comparava-os com a conversação e achava-os insuficientes. Dizia a Fedro que a escrita é um simulacro da fala que parece muito útil para a memória, o saber, a imaginação, mas que acaba por ser contraproducente. As pessoas confiam nela e não desenvolvem as suas próprias capacidades. Pior: chegam a acreditar que sabem alguma coisa porque têm livros.
A conversação depende dos interlocutores: quem são, o que sabem, o que lhes interessa, o que acabam de dizer. Ao invés, os livros são monólogos desconsiderados: ignoram as cirscunstâncias em que são lidos. Repetem sempre o mesmo sem ter em conta o leitor; não escutam as suas perguntas nem as suas réplicas.(...)
Em resumo: a inteligência, a experiência, a vida criativa desenvolvem-se e reproduzem-se através da palavra viva, não da letra morta. (…)
Mas o texto, planta seca da fala, não tem de suplantá-la. Pode servir-lhe de esteio ou fertilizante. Pode ser matéria morta que sufoca a vida ou que a favorece: texto que aniquila ou vivifica. O importante é não perder de vista o que deve estar ao serviço de quê. Tendo isto presente, podemos aceitar a crítica de Sócrates e sair em defesa do livro “Tens razão: os livros são texto morto se não favorecem a animação da vida. Tens razão: quando acontece o milagre da vida inspirada, seria ridículo preferir os livros. Mas já não dispomos do ócio das tardes livres em Atenas. E o simulacro da vida inspirada que existe nos grandes livros parece ser mais do que um simulacro: parece vida, inspiração latente à espera de reanimação(…).”
(…)
Cultura é conversação. Mas escrever, ler, editar, imprimir, distribuir, catalogar, criticar podem ser lenha para o fogo dessa conversação, formas de animá-la. Até se pode dizer que publicar um livro é colocá-lo no meio de uma conversação; que organizar uma editora, uma livraria, uma biblioteca é organizar uma conversação. Uma conversação que nasce, como deve ser, da tertúlia local; mas que se abre, como deve ser, a todos os lugares e a todos os tempos.
Livros de mais, Ler e publicar na era da abundância, Gabriel Zaid, Temas e Debates, 2008
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