Uma entrevista que podia ser supergigante mas não é.
(O problema é que na internet tudo parece supergigante)
No dia a seguir às eleições europeias, enviámos uma pergunta para Bruxelas.
Ainda a digerir o resultado das eleições europeias, Ana Pessoa respondeu.
Entretanto, enviámos-lhe mais uma pergunta. E quando a julgávamos imersa nos pensamentos mais profundos, Ana respondeu-nos em direto do balcão de uma chocolataria. À terceira pergunta, já Ana fazia a digestão do cacau e folheava livros de fotografia em plena livraria Taschen.
Por nós, até continuaríamos o pingue-pongue pelo resto da tarde, mas havia documentos importantes da Comissão Europeia à espera de tradução e a brincadeira teve de terminar.
Até agora os livros que escreveste são narrativas na primeira pessoa. Em O caderno vermelho da rapariga karateca escreves os pensamentos N, 14 anos, quase 15; neste último Supergigante corres alguns quilómetros dentro do corpo de Edgar, rapaz de 15 ou 16 anos. Como é estar na pele de um adolescente? São todos iguais ou isso é uma invenção nossa?
O Supergigante e a Karateca são narrativas na primeira pessoa. Aconteceram assim. Não fico muito tempo a refletir sobre os textos. Não me interessa muito de onde vêm nem para onde vão. Os textos acontecem. Nesse sentido, sou como o Edgar do Supergigante. Não sou muito de pensar. Os adolescentes são pessoas em estado bruto. Gosto de escrever na perspetiva de alguém que é assim mais bruto! Escrever na primeira pessoa permite escrever sem máscaras. São narrativas mais honestas.
A Karateca foi um texto especialmente difícil por ser um caderno. Estive para desistir. É um desafio escrever como um adolescente. Felizmente encontrei os meus diários da adolescência e (re)encontrei um registo cómico.
O que é que te surpreendeu mais nesses diários quando os voltaste a ler? Já lá estavas tu ou não te reconheces minimamente?
As reflexões, talvez. Não sabia que era tão introspetiva. Nem tão ridícula. Nem tão irónica! Ainda dei umas gargalhadas. Também me surpreenderam as histórias de que já não me lembrava e que na altura pareciam tão importantes. Era como ler um livro de ficção sobre mim.
Sinto uma grande proximidade e uma grande distância em relação a essa memória escrita. Mas agora já não me lembro muito bem. Tenho de ler outra vez!
Uma marca dos teus livros é o humor, a ironia, por vezes, até um certo sarcasmo... O mundo em que vivemos dá-te muita vontade de rir e gozar?
Tudo me dá vontade de rir. Acho que sou um bocado infantil. Agora estou numa loja de chocolates em Bruxelas e o senhor que me está a atender leva isto do chocolate muito a sério. Dá-me vontade de rir. O meu pai contava-me as histórias todas ao contrário quando eu era miúda. Era sempre a capuchinho que comia o lobo ou então a avó. Já acordei a meio da noite a dar uma gargalhada. Quando penso no Supergigante, também me dá vontade de rir. É como se publicar um livro fosse um grande disparate. Ou uma grande surpresa. Não sei bem.
Quando é que o Edgar, o rapaz Supergigante, apareceu na tua cabeça? Houve algum dia em que o viste, de esguelha, passar a correr ao teu lado?
Sim, houve. Estava a fazer um curso intensivo de holandês em Breda, na Holanda. Estive lá sozinha 2 semanas e estranhei muito aquele sítio, os holandeses, a língua. Sentia-me verdadeiramente sozinha e isso acabou por ser um sentimento bom. Um tempo para mim, para qualquer coisa nova.
Um dia fui ao cinema. Escolhi um filme francês, Le gamin au vélo. E gostei muito do filme, sobretudo das filmagens do rapaz na bicicleta, a ideia de liberdade, de um momento a sós, sempre em frente. E lembrei-me disso, de andar de bicicleta, de correr a abrir e de isso ser tão bom.
E nunca mais parei de pensar nisso. Num rapaz a correr (não na bicicleta).
Tinha de ser um rapaz. Apetecia-me escrever sobre um rapaz. Andei meses a pensar no motivo. Porque está a correr sempre em frente?
Nesta história, e também na anterior, há um romance a acontecer, a querer ter um final feliz. As histórias de amor da adolescência dão bom material para um livro? Em que é que diferem das histórias de amor quando já somos adultos?
Penso que é tudo mais urgente quando és adolescente. E tudo é uma prova também. Estás a ser constantemente comparado com os teus irmãos, com os teus primos, com os teus amigos, com os teus colegas. Ainda estás a tentar perceber qual é o teu papel. E não estás bem sozinho. Precisas desse contraste para perceberes quem és. "Aquele faz assim, eu faço assado". O reconhecimento dos outros é fulcral. Queres ser compreendido e aceite, queres que gostem de ti, que cuidem de ti. Mas já não vão ser os teus pais a cumprir esse papel. Queres ser aceite e compreendido por pessoas como tu, pelos adolescentes como tu. E também queres compreender o outro e aceitá-lo, queres gostar de alguém e cuidar. Tudo é eterno e intenso, a vida dura para sempre, tens planos e sonhos e motivações, tudo é possível. E apaixonares-te por alguém reúne tudo isso, essa urgência, essa necessidade de concretização. E nada faz sentido se estiveres separado de quem gostas e isso é terrível, porque os adolescentes vivem necessariamente separados, vão de férias com os pais e têm de cumprir regras de um mundo de adultos que ainda não é o mundo deles. E portanto, sim. Acho que o amor/ a paixão na adolescência é um bom material. Os adultos não são tão interessantes. Já não têm a vida toda pela frente, não podem dizer o que lhes vem à cabeça, não podem desatar a correr, não acreditam tanto, estão desiludidos. Já nem sequer vão votar!
Mais sobre a Ana Pessoa, aqui.
Procurem o Supergigante e O caderno vermelho da rapariga karateca.
Fiquei com vontade de correr atrás desse livro!
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