terça-feira, 22 de julho de 2014

Crianças comidas por felinos: grande coisa!*


* Este texto contém spoilers (desculpem lá, mas seria difícil falar destes livros sem desvendar os seus finais).






















“Grande Coisa” foi publicado originalmente no Reino Unido, em 2005, pela Walker Books e editado em Portugal, em 2010, tendo sido até ao momento o único livro do catálogo do Planeta Tangerina que resultou da compra de direitos de autor.

E como foram as reações dos leitores a este “Grande Coisa”?
De extremos.
Há quem tenha sido seduzido de imediato pelo enredo e pelo humor um pouco negro; há quem não tenha achado graça absolutamente nenhuma e, antes pelo contrário, se tenha até sentido um pouco melindrado com o final da história e se recuse a contá-la às suas crianças (conhecemos alguns casos).

E que história é esta?
Neste livro conhecemos Billy, um miúdo mimado que não se deixa impressionar por qualquer coisa, e um pai empenhado em dar a conhecer ao filho as coisas espantosas do mundo:
Andar a grande velocidade num nave espacial?
Ver a girafa mais alta do mundo ou a borboleta mais minúscula?
Saltar num castelo insuflável ou andar de comboio a vapor?
“Grande coisa” diz o Billy com um encolher de ombros indiferente.

O caso é, portanto, este. E o final, bem..., o final é o que nem Billy esperava, nem o que nós poderíamos imaginar: o Billy é comido por um tigre, mas, não se espantem assim muito, porque não foi a primeira nem a segunda criança na história da literatura infantil a ser devorada por um felino...





Talvez muitos leitores não saibam, mas este livro de William Bee é uma espécie de versão moderna de uma das primeiras obras do aclamado Maurice Sendak, chamada “Pierre: a cautionary tale”, editada em 1962. 

Neste livro, um rapaz chamado Pierre mostra uma atitude muito semelhante à de Billy. Indiferente ao amor e aos cozinhados da mãe, aos avisos do pai e às suas tentativas para o educar, Pierre a tudo responde com um mal-educado (e há quem diga até que deprimido) “I don’t care”, exatamente como, anos mais tarde, Billy viria a responder ao pai: “Grande coisa!” (“Whatever!” no original).

(...)
One day his mother said

when Pierre climbed out of bed

“Good morning, darling boy,

you are my only joy.”

Pierre said, “I don’t care!”
(...)



Tal como Billy, também Pierre acaba o dia na barriga de um felino, neste caso na barriga de um leão simpático que até lhe pergunta se ele se importa de ser comido:

(...)
Now as the night began to fall
a hungry lion paid a call.

He looked Pierre right in the eye

And asked him if he’d like to die.

Pierre said, “I don’t care!”
“I can eat you, don’t you see?”

“I don’t care!”

“And you will be inside of me.”

“I don’t care!”

“Then you will never have to bother”

“I don’t care!”

“With a mother and a father.”

“I don’t care!”

“Is that all you have to say?”

“I don’t care!”

“Then I’ll eat you, if I may.”

“I don’t care!”

So the lion ate Pierre.























Tal como na sua obra mais conhecida, O Sítio das coisas selvagens, também neste livro de Sendak nos confrontamos com o facto de as crianças terem, também elas, sentimentos negativos (zangam-se, impacientam-se, fazem birras, exigem demasiado, amuam). Com esta exposição do lado menos adocicado da infância, Sendak começou por chocar muitos pais e professores. Porque, ao contrário de esconder ou reprimir estes comportamentos, Sendak achou que devia mostrá-los, tirar partido deles, ser irónico e gozão. Apesar do choque inicial, a obra de Sendak acabou por ser reconhecida como uma das mais brilhantes do século XX e abriu portas para que livros como os de William Bee fossem recebidos sem grandes polémicas (goste-se ou não).



Por curiosidade, já em 1907, num outro livro chamado Cautionary Tales for Children” escrito por Hilaire Belloc, surgia um rapaz chamado Jim, que era comido por um leão depois de desobedecer à sua ama. Portanto, a ideia de fazer das crianças refeição de um felino para que aprendam uma lição não é de todo nova nesta mundo dos livros infantis e nem sequer começou em Sendak…

There was a Boy whose name was Jim;
His Friends were very good to him.
They gave him Tea, and Cakes, and Jam,
And slices of delicious Ham,
And Chocolate with pink inside,
And little Tricycles to ride,
And read him Stories through and through,
And even took him to the Zoo—
But there it was the dreadful Fate
Befell him, which I now relate.

You know—at least you ought to know.
For I have often told you so—
That Children never are allowed
To leave their Nurses in a Crowd;

Now this was Jim’s especial Foible,
He ran away when he was able,
And on this inauspicious day
He slipped his hand and ran away!
He hadn’t gone a yard when—Bang!
With open Jaws, a Lion sprang,
And hungrily began to eat
The Boy: beginning at his feet.
















Nos três casos (Belloc, Sendak e Bee), estamos próximos daquilo a que os ingleses chamam uma cautionary tale— uma espécie de história exemplar ou lição de vida — onde uma criança se porta mal e é castigada por isso. 
Por tradição, o tom destas histórias é exagerado, com um lado um pouco assustador para que o efeito resulte. Por tradição, os adultos que rodeiam as crianças fazem avisos, que são alvo da indiferença dos mais pequenos, e ficam, depois, também eles um pouco indiferentes às consequências quase sempre dolorosas que resultam do facto de não terem sido ouvidos.

E nesta questão do “final da história”, estes três livros (com várias décadas a separá-los) diferem um pouco: se Belloc exagera na reação indiferente dos pais ao desaparecimento do filho (a mãe chega mesmo a dizer, “não admira, com os avisos que lhe fiz”); no caso do livro de Sendak, os pais ainda correm com o leão para o gabinete do médico para tentar salvar a criança, contrariando o final tradicional deste tipo de contos...

Porque de facto, estamos próximos, mas não estamos perante verdadeiras cautionary tales, exatamente como aquelas que eram contadas na Inglaterra do século XIX, extremamente populares, e que na época seriam mesmo para levar a sério. Seja no livro de Hilaire Belloc, seja no de Sendak ou de William Bee, o que temos são três paródias àquele tom exagerado, moralista e até aterrorizador — como o que surge no muito conhecido Struwwelpeter que, apesar de hoje ser quase hilariante, na época era bem capaz de causar pesadelos (veja-se o que acontecia aos meninos que chuchavam no dedo...).






E como termina a história de “Grande Coisa”?
Talvez porque já passaram muitos anos e as lições (e as morais) dão cambalhotas sucessivas, os pais de Billy já perderam de vez a paciência e não se deixam impressionar, nem com o apetite do tigre, nem com o susto de Billy.
O livro resulta assim numa espécie de catarse para pais cansados de caprichos e, em alguns casos, talvez consiga a proeza de fazer rir em conjunto, tanto os pais como os filhos, da falta de maneiras de uns e da terrível falta de paciência de outros...

Para conhecerem o Jim, sigam por aqui.

Para conhecerem o Pierre, oiçam e vejam aqui a história completa.

E o nosso Billy, claro está, também merece uma visitinha, aqui.


Bom Verão!,
que os filhos se portem bem e deixem os pais descansar (e vice-versa).

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