sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A história da Celeste ou a minha história com as galinhas (2)

Não me lembro se a galinha Celeste chegou ao Planeta Tangerina aninhada ao colo do dono, se vinha dependurada pelas asas. Mas a segunda hipótese condiz melhor com o rapaz que a comprou e dela tratou nessa primeira vida.
Vida dura, como já vão perceber...
A Celeste chegou magra e muito nervosa. Pelo aspeto geral das penas, pelas manchas depenadas e pelo ar atormentado, desconfiava-se de que sofria de maus tratos. Mas não era fácil perceber se as penas tinham sido arrancadas pela própria — as doenças nervosas têm às vezes destas coisas —, se pelos companheiros do galinheiro (um galo e meia dúzia de galinhas, provavelmente muito velhacas).
Nunca saberemos quem lhe fazia mal. Nem saberemos também se tinha deixado de pôr ovos por causa dos maus tratos, se era a incapacidade de pôr ovos que provocava os maus tratos — ambas as hipóteses eram más, mas esta última um verdadeiro filme de terror.
Ao sentir que a sua menina definhava de dia para dia, o dono decidiu trazê-la para esse reduto de boas energias que é o quintal traseiro do Planeta Tangerina.
E a Celeste aqui ficou. Foi imediatamente adotada pela Yara e pela Cristina, que passaram a mimá-la todas as manhãs com os restos do jantar e que, aproveitando o abrigo do tanque de cimento, lhe montaram uma verdadeira moradia. Da minha parte, recebeu aquilo que de melhor lhe consegui dar na altura: tolerância — essa palavra um pouco feia que faz lembrar grandes fretes e olhos revirados.



Aos poucos, a Celeste começou a melhorar. Nasceram-lhe penas novas, ganhou peso, parecia toda ela mais brilhante. Ao almoço, vinha bicar-nos as pernas por debaixo da mesa, morder-nos os dedos dentro das sandálias e atacar-nos os bolsos das calças de ganga. Tanto atrevimento só podia querer dizer felicidade.
As visitas comentavam: “esta vossa galinha, sim senhor, já parece outra”.
E é verdade, parecia outra.

Foi então que o milagre aconteceu: uma bela manhã, no ninho de tirinhas de papel feito pelas mãos da Cristina, encontrámos um ovo ainda quente. Para mim, podem não acreditar, aquele ovo foi uma revelação, uma coisa estúpida que me aconteceu. Não foi uma questão de começar a respeitar mais a galinha ou a considerá-la mais digna só por se ter tornado útil.
Foi simplesmente ter-me apercebido de que um animal que vive de quase nada, que come tudo e mais alguma coisa, que caminha sobre o seu próprio cocó, transforma o pouco que recebe numa coisa tão perfeita e extraordinária.
Fui para casa a pensar nisto.
E este livro, pode até nem parecer, resultou dessa espécie de deslumbramento que me aconteceu: fiquei como que grata à Celeste por ter sido assim deslumbrada.

Está contada a história.
Só falta dizer que o rapaz da primeira vida da Celeste é o Bernardo (agricultor e avicultor nos intervalos da ilustração) e que a Yara e a Cristina são as donas novas que lhe saíram na rifa, nesta segunda vida a que teve direito.

1 comentário:

Cláudia Pinheiro disse...

Que felicidade a vossa de ter conhecido e tratado da Celeste, fonte de inspiração para o novo livro! Brilhante! É preciso estarmos atentos aos sinais que a vida nos vai dando e aproveitar esses sinais para construir verdadeiras obras de arte... Parabéns...